Whisky
Nome Original: Whisky
WHISKY: UMA BOA DOSE DE AMBIGÜIDADE, SUGESTÕES E DÚVIDAS
O cotidiano pra lá de enfadonho e uma gama de sentimentos escondidos são os principais temas de Whisky, filme uruguaio dirigido em 2004 por Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll.
Dentre esses sentimentos escondidos, destaque para o ciúme -- ou para a inveja, se você preferir -- entre irmãos: um dos mais antigos ressentimentos da nossa pobre existência humana. Está na Bíblia.
Whisky é sóbrio, quase minimalista. Não há invencionices cinematográficas, as músicas são poucas e adequadas ao belo roteiro, o figurino é apropriado às personagens. Não sobra nem falta nada. É um filme pausado, com poucos diálogos e apenas três personagens relevantes: Jacobo, Marta e Herman.
Tal qual Caim, Jacobo é o primogênito ressentido. Ele mora no Uruguai, é carrancudo, desleixado, ensimesmado, grosseiro, sem graça, solitário, triste; porém cumpridor dos seus deveres, fiel às tradições, generoso e respeitador. É o tipo de pessoa que dificilmente alguém convidaria para um churrasco ou para uma festa infantil (pois seria maçante para todos, especialmente para ele). Entretanto... podemos contar com Jacobo nos momentos difíceis. Tal qual um bom capitão de navio, ele é o último a abandonar o barco.
Marta é uma mulher simples, mas não simplória; ela tem lá seus encantos e mistérios. É tímida e habitualmente silenciosa. E, como a maioria das fêmeas, vaidosa quando está apaixonada.
Herman é o oposto do seu irmão: é extrovertido, dono de certa elegância, gentil, casado, pai, alegre e possivelmente bem-sucedido. Mora no Brasil (fato considerado positivo, visto que o nosso país é retratado como uma espécie de nova América). É o tipo de pessoa que dificilmente alguém não convidaria para um churrasco ou para uma festa infantil. Entretanto... será que podemos contar com Herman nos momentos difíceis?
Jacobo tem ciência da sua exclusão social, mas não deseja que seu maior rival, Herman, saiba disso. Com o propósito de esconder essa sua condição, ele propõe a Marta que ela se passe por sua esposa durante o período em que seu irmão-rival estiver no Uruguai. Marta aceita a proposta, atitude que reforça a idéia de que ela sente amores e calores por Jacobo. Esses sentimentos, porém, começam a murchar quando Marta conhece Herman, o gentil Herman.
Por falar nele, repito a pergunta: será que podemos contar com Herman nos momentos difíceis? Afinal de contas, durante anos ele demonstrou pouquíssimo ou nenhum interesse em seus pais e seu irmão: desconhecia a iminente falência da antiquada fábrica de meias fundada por seu pai e dirigida posteriormente por seu irmão e, sobretudo, não deu a mínima importância ao lamentável estado de saúde de sua mãe, que tempos depois veio a falecer. Mais uma vez: podemos contar com Herman? Talvez.
Isso mesmo: talvez. Porque em Whisky não há certezas absolutas. Há, sim, muitas sugestões e dúvidas. Aos poucos, com extrema sensibilidade, os tais sentimentos escondidos são desnudados, revelando o ser humano como ele realmente é, sem casca, sem máscaras: composto de belezas e de fraquezas, com sua devoção e seu desprendimento, com sua generosidade e sua mesquinhez, com sua dignidade e sua imundície de caráter. E é justamente essa mistura de sentimentos bons e ruins numa mesma pessoa, esse desnudamento franco, sincero, que faz de Whisky um filme notável.
Essa ambigüidade de caráter é realçada no fato de Herman viajar ao Uruguai com uma das incumbências mais caras ao ser humano: pedir perdão. E ele -- é preciso dizer -- o faz com muita discrição e sinceridade. Por isso, Whisky é também uma tentativa de acerto de contas entre irmãos. Uma tentativa porque a relação entre Jacobo e Herman é tão fria, tão vazia de afeto, que impossibilita o perdão sincero, verdadeiro. As palavras são raras. O contato físico é débil. Tudo é insosso, inexpressivo, seco, morto. Há apenas silêncio, silêncio e silêncio. Um silêncio longo e profundo. Um silêncio constrangedor. Tão constrangedor quanto pronunciar “whisky” ao ser fotografado, unicamente para dar a impressão de uma felicidade que talvez não exista. Uma felicidade que talvez jamais tenha existido. Uma felicidade que talvez jamais existirá -- reforçando a idéia de dúvida do filme e, conseqüentemente, contrariando os proféticos e indubitáveis ensinamentos bíblicos.
Paulo Jacobina
Sessões
Diretores: Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll
Ano: 2004
Ano: 2004
País: Uruguai, Argentina, Alemanha e Espanha.
Elenco:Andrés Pazos, Mirella Pascual e Jorge Bolani
Prêmios: Un Certain Regard do Festival de Cannes, Melhor Filme de Lingua Espanhola fora da Espanha do Festival de Goya; Kikito de Ouro, Melhor Filme pela Prêmio da Audiência e Melhor Atriz no Festival de Gramado e Gran Coral do Festival de Havana.
Elenco:Andrés Pazos, Mirella Pascual e Jorge Bolani
Prêmios: Un Certain Regard do Festival de Cannes, Melhor Filme de Lingua Espanhola fora da Espanha do Festival de Goya; Kikito de Ouro, Melhor Filme pela Prêmio da Audiência e Melhor Atriz no Festival de Gramado e Gran Coral do Festival de Havana.
WHISKY: UMA BOA DOSE DE AMBIGÜIDADE, SUGESTÕES E DÚVIDAS
O cotidiano pra lá de enfadonho e uma gama de sentimentos escondidos são os principais temas de Whisky, filme uruguaio dirigido em 2004 por Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll.
Dentre esses sentimentos escondidos, destaque para o ciúme -- ou para a inveja, se você preferir -- entre irmãos: um dos mais antigos ressentimentos da nossa pobre existência humana. Está na Bíblia.
Gênesis 4:
E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e teve a Caim, e disse: Alcancei do Senhor um varão.
E teve mais a seu irmão Abel: e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra.
E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor.
E Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas, e da sua gordura: e atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta.
Mas para Caim e para a sua oferta não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o seu semblante.
E o senhor disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante?
Se bem fizeres, não haverá aceitação para ti? E se não fizeres bem, o pecado
jaz à porta, e para ti será o seu desejo, e sobre ele dominarás.
O primeiro homicídio.
E falou Caim com o seu irmão Abel: e sucedeu que, estando eles no campo, se
levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou.
[...]
Whisky é sóbrio, quase minimalista. Não há invencionices cinematográficas, as músicas são poucas e adequadas ao belo roteiro, o figurino é apropriado às personagens. Não sobra nem falta nada. É um filme pausado, com poucos diálogos e apenas três personagens relevantes: Jacobo, Marta e Herman.
Tal qual Caim, Jacobo é o primogênito ressentido. Ele mora no Uruguai, é carrancudo, desleixado, ensimesmado, grosseiro, sem graça, solitário, triste; porém cumpridor dos seus deveres, fiel às tradições, generoso e respeitador. É o tipo de pessoa que dificilmente alguém convidaria para um churrasco ou para uma festa infantil (pois seria maçante para todos, especialmente para ele). Entretanto... podemos contar com Jacobo nos momentos difíceis. Tal qual um bom capitão de navio, ele é o último a abandonar o barco.
Marta é uma mulher simples, mas não simplória; ela tem lá seus encantos e mistérios. É tímida e habitualmente silenciosa. E, como a maioria das fêmeas, vaidosa quando está apaixonada.
Herman é o oposto do seu irmão: é extrovertido, dono de certa elegância, gentil, casado, pai, alegre e possivelmente bem-sucedido. Mora no Brasil (fato considerado positivo, visto que o nosso país é retratado como uma espécie de nova América). É o tipo de pessoa que dificilmente alguém não convidaria para um churrasco ou para uma festa infantil. Entretanto... será que podemos contar com Herman nos momentos difíceis?
Jacobo tem ciência da sua exclusão social, mas não deseja que seu maior rival, Herman, saiba disso. Com o propósito de esconder essa sua condição, ele propõe a Marta que ela se passe por sua esposa durante o período em que seu irmão-rival estiver no Uruguai. Marta aceita a proposta, atitude que reforça a idéia de que ela sente amores e calores por Jacobo. Esses sentimentos, porém, começam a murchar quando Marta conhece Herman, o gentil Herman.
Por falar nele, repito a pergunta: será que podemos contar com Herman nos momentos difíceis? Afinal de contas, durante anos ele demonstrou pouquíssimo ou nenhum interesse em seus pais e seu irmão: desconhecia a iminente falência da antiquada fábrica de meias fundada por seu pai e dirigida posteriormente por seu irmão e, sobretudo, não deu a mínima importância ao lamentável estado de saúde de sua mãe, que tempos depois veio a falecer. Mais uma vez: podemos contar com Herman? Talvez.
Isso mesmo: talvez. Porque em Whisky não há certezas absolutas. Há, sim, muitas sugestões e dúvidas. Aos poucos, com extrema sensibilidade, os tais sentimentos escondidos são desnudados, revelando o ser humano como ele realmente é, sem casca, sem máscaras: composto de belezas e de fraquezas, com sua devoção e seu desprendimento, com sua generosidade e sua mesquinhez, com sua dignidade e sua imundície de caráter. E é justamente essa mistura de sentimentos bons e ruins numa mesma pessoa, esse desnudamento franco, sincero, que faz de Whisky um filme notável.
Essa ambigüidade de caráter é realçada no fato de Herman viajar ao Uruguai com uma das incumbências mais caras ao ser humano: pedir perdão. E ele -- é preciso dizer -- o faz com muita discrição e sinceridade. Por isso, Whisky é também uma tentativa de acerto de contas entre irmãos. Uma tentativa porque a relação entre Jacobo e Herman é tão fria, tão vazia de afeto, que impossibilita o perdão sincero, verdadeiro. As palavras são raras. O contato físico é débil. Tudo é insosso, inexpressivo, seco, morto. Há apenas silêncio, silêncio e silêncio. Um silêncio longo e profundo. Um silêncio constrangedor. Tão constrangedor quanto pronunciar “whisky” ao ser fotografado, unicamente para dar a impressão de uma felicidade que talvez não exista. Uma felicidade que talvez jamais tenha existido. Uma felicidade que talvez jamais existirá -- reforçando a idéia de dúvida do filme e, conseqüentemente, contrariando os proféticos e indubitáveis ensinamentos bíblicos.
Paulo Jacobina
Sessões
Ter o cotidiano expresso ao alcance dos nossos olhos é deprimente.
ResponderExcluirÉ um pedido de socorro.
É ver o que somos, e o que somos não é o bastante para orgular-se.
Querer ver o mundo com outros olhos, mas saber das limitações que o sistema nos impõe.
Ser mais um é ser todo mundo.
Todos somos diferentes, mas no fundo, somos todos iguais.
Senhoras e senhores é com imenso desprazer que lhes apresento:
"A vida como ela é".
Só falando 'whisky' para sair um sorriso.
Mentiroso, como a vida é. Como a vida criada pelo sistema. Pelo sistema que criamos.
Para Marta, Chico cantou:
"Todo dia ela faz
Tudo sempre igual"
Na continuação, só um Buarque de Holanda para florear, vê a vida cheia de flores e borboletas. Mas são apenas moscas e mariposas.
Mas talvez seja melhor viver da mentira. Nem que seja só durante numa visita de Herman a Jacobo.
Eu não sei se vou aguentar mais um dia comum. Quero Jack Daniels. Duplo. Cowboy.
A vida segue... como sempre.
Vitor Stefano
Sessões
P.S.: Essa não é a realidade que creio, mas é a realidade que, aparentemente, vivemos.
Whisky é também humor negro: "Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor. Pelo rádio, jornal, revista e outdoor. Te oferece dinheiro, conversa com calma, contamina seu caráter, rouba sua alma. Depois te joga na merda sozinho, transforma um preto tipo A num neguinho!"
ResponderExcluirE a promessa de vida melhor no Brasil pode não ser o que se pensa. O mundo do consumo cheio dos seus atrativos "coloridos" nos distancia da brutalidade do cotidiano, do real, daquilo que é demasiado humano.
Entretanto, haverá uma singela beleza nos beijos com gosto de hortelã. Porque o que fode mesmo é se calar com a boca de feijão.
Será melhor um operário em construção ou um burguês liso? Não extremismo, pois as coisas não se dividem assim. O cotidiano revela o leve e bruto desespero das misérias humanas.
Mateus Moisés
Sessões