Cinema Indiano entrevista: Beatriz Seigner - Diretora de Bollywood Dream - O Sonho Bollywoodiano


Na postagem anterior, Bollywood Dream - O Sonho Bollywoodiano, anunciei que reproduziria no Sessões esta bela entrevista postada em novembro do ano passado pelo blog Cinema Indiano com a diretora do filme, Beatriz Seigner. Seguem as palavras de Ibirá Machado e a conversa que rolou entre ele e Beatriz:

O filme teve excelente recepção na 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e esteve entre os finalistas para o maior prêmio da Mostra.

Ela gentilmente topou responder a algumas perguntas que fiz, e o resultado vocês podem conferir aqui. Ela conta como foi o processo de elaboração do roteiro, como o apoio com a equipe indiana foi fundamental - sobretudo com a mão de Santosh Sivan - e declara gostar de Taare Zameen Par, dentre outros filmes.

E preciso dizer, mesmo sem ter pedido permissão, mas Beatriz tem apenas 25 anos de idade. Digo principalmente como incentivo a todos, e uso o "apenas" como prova de que com determinação somos capazes de realizar aquilo que queremos, sabendo onde meter a cara, ou tirar o corpo no momento correto. Com poesia e filosofia, essa entrevista com Beatriz Seigner fala muito mais do que as poucas perguntas que fiz.

Cinema Indiano: Fiquei sabendo que a ideia de fazer um filme na Índia surgiu mais ou menos por acaso, durante um almoço, quando você contou sobre sua viagem para esse país. Mas como foi que o roteiro em si configurou-se? Como surgiu a ideia de Bollywood?

Beatriz Seigner: Então, eu já havia morado na Índia em 2003 já com a ideia de fazer um filme que unisse Brasil e Índia, e estava fazendo um documentário sobre os valores e tradições que estão desaparecendo com o rápido processo de Ocidentalização da Índia, e vários atores, amigos meus, vinham me perguntar como poderiam ir para Bollywood participar de algum filme. Até que uma hora deu o click, e eu falei com a Lorena, na fila de uma peça, sobre fazer um filme chamado Bollywood Dream ( o nome veio junto com o click - nome em inglês pois era um sonho estrangeiro), sobre três atrizes que queriam ir para a Índia para tentar a sorte na indústria cinematográfica de lá e experimentariam os contrastes destas mudanças com as quais eu estava tentando lidar. E a Lorena na hora disse que havia outra amiga dela, a Paula Braun, com quem havia feito O Cheiro do Ralo, e que toparia uma aventura destas.

Acho que naquela mesma semana nos sentamos para almoçar e então perguntei o que cada uma estava com vontade de viver, quais perguntas queriam trazer para os personagens/roteiro. A terceira personagem seria eu mesma aos 18 anos quando fui para lá pela primeira vez. E depois passei esta personagem para a Nataly, pedindo para que ela a tornasse sua com seus próprios questionamentos. E assim começou o processo de desenvolvimento deste roteiro tal como ficou no filme. Isso foi no final de 2006. Encontramos o Ram Devineni, em março de 2007 na Cinemateca Brasileira, que se tornou nosso produtor, e desenvolvi então este roteiro, colocando estas personagens nas situações que eu achava pertinentes para expressar as contradições que passamos neste momento de globalização e hegemonia cultural - por exmeplo o questionamento entre eterno e efêmero no festival do Ganesha, o contraste entre a dança clássica indiana, cheia de significados por trás de cada gesto, e a dança bollywoodiana, o encontro entre culturas no albergue/jazz piano bar onde convivem instrumentos/músicas ancestrais com ritmos e misturas contemporâneas, os pequenos ritos que estão desaparecendo - por exemplo os mandalas "kolans" que são feitos na frente das casas com pó branco para "organizar o universo" - coisa que cada vez fica mais raro nas grandes metrópoles pela falta de tempo em que vivem seus habitantes - e por aí vai.
Foram quatro anos de pesquisa prévia, depois dois anos desenvolvendo este roteiro, e no começo de 2008, fui para lá para ver os estúdios da família do Ram, e as mudanças que tinham acontecido na Índia em 5 anos, e o roteiro ganhou outro salto qualitativo. No final de agosto de 2008 fui para lá fazer a preprodução, e as meninas chegaram no começo de setembro para filmarmos.


CI: Houve alguma mudança no roteiro depois que as dificuldades reais foram enfrentadas?

BS: Muitas. E isso é uma delícia. O roteiro é bom para que se haja um condensamento daquilo que se quer falar/experimentar, uma costura, que as coisas não se percam, pois na hora da ação são muitas forças puxando para direções distintas e é muito fácil perder a coerência de tudo. Eu não queria que o filme fosse um relato de viagem de pessoas vislumbradas consigo próprias, nem uma conversa de bar que não chega a lugar nenhum. Queria propor mudanças e colocar em cheque certos valores modernos. Queria dividir perguntas, principalmente aquela que tanto nos fazem na Índia: "Ao que você pertence, irmão?", pois sinto que cada vez menos pertencemos a alguma coisa neste mundo líquido moderno, inclusive nem a nós mesmos, uma vez que ser íntegro, só fazer aquilo que se acredita ético - no sentido Espinozano do termo, ações que nos trazem felicidade eternas e não efêmeras -, parece ser ingênuo nos dias de hoje.

Quis olhar para o passado, numa sociedade onde ainda se encontra estes valores sendo discutidos nas ruas, para questionar de alguma maneira os caminhos que estamos escolhendo para nosso futuro em termos de humanidade. Mergulhadas nos personagens destas três atrizes, que também estão em buscas - errantes, confusas. Com a palavra pertencer surge o questionamento de identidade, de pertencimento coletivo, das várias camadas de condicionamentos sociais, culturais, familiares, geográficos e temporais a que estamos submetidos. Surge nossa identidade em construção como brasileiros no espelho de outra cultura estrangeira. E este vira o centro do furacão/jornada destes personagens.
Muitas coisas foram se transformando durante as filmagens, principalmente no modo como filmamos, interagindo com as pessoas realmente nas ruas, porque queríamos que tudo parecesse ocorrido ao acaso, "por coincidência" e sorte, mas essa essência, este fio condutor, continuou o mesmo. E isso só foi possível porque tínhamos um roteiro e uma pesquisa elaborada por cerca de 7 anos, que nos deixou livres para improvisar nas situações que existem de verdade com segurança. Como jazz, busca-se o evento, o acontecimento apenas possível naquele momento com aquelas pessoas naquela situação, sobre uma chave já combinada de antemão com todos os músicos presentes. Daí, consegue-se dar alguns voos livres, entre os galhos de pousos nesta estrutura.

CI: Eu achei bem interessante a sutil presença de Bhavana Rhya, dando o tom do choque cultural vivido por cada uma. Como veio essa ideia?
BS: Ela é minha professora de Odissi desde 2002. Foi com ela que esta paixão pela Índia e sua cultura começou. Essa ideia do contraste entre aquilo que se dançava há milhares de anos, as histórias que se contava através da dança, os questionamentos a que se propunham com aqueles movimentos, "dançar para fazer os deuses dançarem e assim exercerem suas funções" e aquilo que se dança hoje, é de certa forma a raiz de todo o resto.
Quando as pessoas na Índia vêem aquela sequência nas cavernas imediatamente elas falam "ah, elas voltaram no tempo!".

CI: Você já tinha visto algum filme indiano antes de fazerem O Sonho Bollywoodiano?

BS: Sim, muitos.

CI: Suponho que hoje já tenha visto alguns. Que reação teve com o primeiro que viu? Gostou de algum em particular?

BS: Achei muito engraçado. O primeiro que vi num cinema lá era uma versão indiana daquele filme hollywoodiano A Rocha. O mais divertido era a reação das pessoas avisando o mocinho ou o vilão que a mocinha ainda estava viva, estava atrás deles e etc...
Gosto do Taare Zameen Par, que representa bem o momento de mudança que passa Bollywood atualmente, e de vários outros filmes indianos que não seguem a fórmula nem a estética Bollywoodiana, em particular gosto de mais dos filmes de Satyajit Ray e os do Santosh Sivan.

CI: De volta ao filme, quanto tempo vocês passaram na Índia? Fizeram algum preparo anterior à viagem ou foram para lá da mesma maneira que chegam as personagens?

BS: Eu fiquei lá por 12 semanas e as meninas por 8. Sim, muitos preparos da minha parte. Até agora para finalizar o filme já foram 4 viagens até lá.

CI: O que mais a impressionou lá?

BS: Puts, tive que fazer um filme inteiro para conseguir expressar isso! :)

CI: Para um ocidental, fazer um filme na Índia está longe de ser a coisa mais fácil do mundo. As coisas pioram por vocês todas serem mulheres. Quais foram as maiores dificuldades que vocês enfrentaram?

BS: Acho que para qualquer projeto cinematográfico que se queira fazer, a chave principal, e talvez o mais difícil e importante, seja encontrar os pares certos para se realizar aquilo que se quer. Pessoas que estejam afinadas estéticas e ideologicamentes. Quando encontramos a equipe que tinha os mesmos gostos, ousadias e princípios que a gente, tudo começou a se mover de maneira orgânica, e ficou mais fácil suportar o trabalho pesado e os percalços do caminho. Pois parece fácil, parece tudo coincidência, mas é tudo puro suor e trabalho meticuloso, repetitivo, artesanal, para que tudo pareça ao acaso como a vida. Passamos por muitas situações limites, de esgotamento físico e mental, e sem dúvida foi uma tarefa hercúlea para todos nós. 99% das probabilidades era que não fosse dar certo, que saíssemos de lá sem um filme. Nos agarramos naquele 1% que era nossa intuição que nos dizía que tínhamos um propósito no qual acreditávamos, e que custasse o que custasse, íamos com a experiência até o fim.

As dificuldades foram muitas, mas minha maior alegria agora, é quando ouço alguém que viu o filme dizer que dá vontade de pegar uma câmera e meter as caras para fazer algo que acredita também. Fui muito instigada nesta empreitada por aquele poema do Goethe que diz que "coragem contém genialidade, poder e magia em si" e que quando a pessoa se compromete de verdade com algo, uma série de encontros que ninguém poderia prever acontecem, e cada encontro traz consigo uma mão daqui, outra dali, e quando você percebe a coisa está se realizando em frente aos seus olhos.

Muitas vezes quando eu apertava o botão "rec" da câmera me parecia que eu estava recordando uma cena que eu havia escrito mas que na verdade já estava acontecendo em algum lugar, e que eu tinha voltado para um momento no tempo antes da realização do roteiro e estava apertando ali, com as atrizes, o botão "recordar". E a Índia é o lugar ideal para que todos os seus conceitos de tempo, espaço, limite, inconsciente coletivo venham à tona e sejam questionados.
Dificuldades? Ah, tantas. Mas já nem me lembro direito delas. Pois nenhuma delas chegou de fato a nos imobilizar. Como dizia F. Pessoa: "Fazer das quedas passos de dança".

CI: Vocês fariam algum filme de Bollywood, mesmo se fosse apenas para aparecer em alguma cena de dança, como querem as personagens?
BS: Fizemos isso para conseguir filmar dentro de sets de filmagem de outros filmes de verdade. Mas com o puro propósito de realizar nosso filme.

CI: Para fazer esse filme vocês contracenaram com pessoas importantes no meio tamil, além de ter tido o apoio de Santosh Sivan, que tem forte projeção não só na indústria tamil, mas também em Bollywood. Vocês tinham consciência da importância deles? Como foi o trabalho com essa equipe indiana?
BS: Sim, Santosh virou nosso grande amigo e produtor executivo de nosso filme. A primeira equipe com que trabalhamos não deu nada certo, pois tínhamso estéticas diferentes, eles gostavam de glamour e eu acho humilhante qualquer pessoa que precisa de glamour para se olhar no espelho. Eles queriam heroínas e eu queria seres humanos. Eles queriam planos explícitos e eu queria filmar pelas sombras, entre cabides, deixar muita coisa fora de quadro, câmera na mão, iluminação natural, para que tudo parecesse captado ao acaso, quase como um documentário, ou reality show.

Queríamos andar na fronteira onde todos estes estilos borram uns aos outros, onde todas estas limitações tornam-se ilusórias. Queria improvisar e fazer planos sequências, e para eles isso era horroroso. Então depois do primeiro dia de filmagem desistimos de dar murro em ponta de faca e fomos atrás de pessoas com maior veia experimental e que pudessem nos ajudar a ir na direção que queríamos. Foi quando o Santosh entrou no nosso barco e nos mandou os assistentes dele para nos ajudar em definitivo. E os percalços daí em diante ficaram mais fáceis de serem transpostos, pois estávamos todos na mesma sintonia, indo na mesma direção.

CI: Eu comentei na minha crítica que algumas dificuldades vividas pelas personagens foram semelhantes ao que eu mesmo vivi lá (a reserva no hotel, o trem errado etc.). Houve alguma inspiração real para isso?
BS: Claro, sempre. A paixão pela realidade, e a transcendência dela através da subjetividade humana, é o que nos dá tesão nesta arte.

CI: Por fim, o que vocês trazem hoje na bagagem depois dessa experiência?

BS: A própria experiência desta realização, e a delícia das amizades e encontros que este filme proporcionou.


É isso aí, pessoal! Muito obrigado ao Ibirá Machado por esta cessão aqui no Sessões.

Leandro Antonio
Sessões

Comentários

  1. O que dizer sobre uma mulher de 25 anos que consegue fazer um filme na e sobre a Índia. Ela merece no mínimo meus parabéns.
    O Ibirá Machado também merece ser homenageado por ter um blog sobre um cinema tão distante de nós. Não temos a mínima noção do que é Bollywood. Só nos baseamos sobre a temática daquele país quando vimos filmes como 'Quem Quer Ser um Milionário' ou documentário como 'Nascidos em Bordéis'. Precisamos conhecer mais, procurar mais, ter mais acesso, e Ibirá com seu ótimo blog consegue nos dar uma boa pitada do curry que falta nesse restaurante que se chama cinema.

    Parabéns ao Leandro pela inusitada presença em uma mostra sobre cine indiano, ao Ibirá pelos motivos ditos acima e para Beatriz Seigner pela sua capacidade de fazer esse filme, que ainda procurarei mais sobre.

    Queremos cinema indiano, butanês, burundiano, angolano e mongol no Brasil. Distribuidoras, vamos abrir um leque de um cinema que deve ser divulgado e que nós, meros servos do imperialismo americano, tenhamos acesso a todo tipo de cultura.

    Vitor Stefano
    Sessões

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  2. Obrigado mais uma vez ao Leandro e obrigado, Vitor.

    Um dos maiores esforços que faço é quebrar com o preconceito e mostrar que por lá são realizadas anualmente dezenas de obras dignas de cinema. Mas além de quebrar o preconceito, porque não sonhar com a quebra do imperialismo?

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  3. Que dizer de um comentário tão pertinente como este do colega Vitor e da atenção que Ibirá demonstrou para comigo e para com o Sessões? Digo que estou muito feliz e ressalto novamente que os leitores deste blog terão uma entrevista com o Ibirá publicada.

    Sempre, sempre obrigado.

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