Sessões entrevista: Krzysztof Kieślowski
Hoje arrumando algumas tralhas no apartamento, encontrei um livro que comprei num qualquer sebo – O Diário Antropológico 2002, assim se chama esse livro perdido no baú do meu quarto e da memória. É um projeto das disciplinas de Antropologia Filosófica e Antropologia Teológica da Faculdade Santa Marcelina feito pelos alunos através de exercícios e de reflexões. Até aí nada de mais, não fosse um dos motes para o livro uma entrevista com o senhor cineasta Krzysztof Kieślowski. A entrevista foi cedida ao jornalista Ken Shulman, da revista Newsweek, em Perugia, Itália em 1995 e publicada no Estado de São Paulo em 1996, um dia após o falecimento do diretor polonês.
Pensei, por que não transcrever esta entrevista para o Sessões? É rápida, porém diz muita coisa sobre o período de maior “badalação” na vida deste diretor – a década de 1990. Também é possível perceber traços de personalidade e da sinceridade daquele que sem saber ou não, estava chegando ao final da vida.
Embora Krzysztof Kieślowski tenha em sua filmografia dezenas de filmes, por aqui, o que mais se conhece e se difunde deste cineasta é sua famosa e premiada Trilogia da Cores, já comentada aqui no Sessões. Reconheço que também não sei muito sobre, mas ainda há tempo para saber. Vamos a entrevista:
“Desejo estar em paz comigo mesmo, mas nunca estarei.”
Quase todas as suas obras importantes estão baseadas em dogmas ocidentais. Será esse o papel da ciência e da arte: redefinir e reapresentar valores tradicionais?
Kieślowski – Não estou certo de que cinema seja arte. Se o for, esta poderia ser uma de suas funções.
Se o cinema não é arte, o que é?
Kieślowski – O cinema é uma maneira primitiva de contar histórias. E o homem sempre sentiu necessidade de contar e escutar histórias. Mas, a câmera cinematográfica registra apenas o que está diante dela. Imaginem tentar filmar a frase: “Ele começou a vir vê-la cada vez menos, até que parou inteiramente de vir.” Essa é uma frase que ocorre frequentemente na literatura. Mas, você não pode filmá-la, porque fala de tempo, de um relacionamento entre duas pessoas. Se você tentasse, precisaria de meia hora.
Por que o senhor escolhe fazer filmes se é a forma inadequada?
Kieślowski – Eu não escolhi essa profissão. Ela simplesmente aconteceu. Faço filmes para estabelecer um diálogo com as pessoas, mas com cada indivíduo que vem ver meu filme. Quero que meu espectador faça as mesmas perguntas que faço a mim mesmo. Por que devo viver? Por que devo acordar pela manhã? Por que tenho de ir trabalhar? O que ocorrerá depois de minha morte? Gostaria que meu espectador entendesse que não está sozinho em seus temores, em suas dúvidas e em sua sensação de que muitas vezes a vida não tem sentido. Essas são perguntas que não têm respostas.
Seus filmes mais recentes tratam da alienação. O homem é mais solitário na década de 90?
Kieślowski – Sem dúvida. Quanto mais rico é um país, mais solitários são seus habitantes. Nunca vi pessoas tão sozinhas como na Suíça, onde filmei A Fraternidade é Vermelha.
Será que o homem está mais isolado nos países ricos do Ocidente do que estava na Polônia e nos países do bloco oriental sob o império soviético?
Kieślowski – Sem dúvida. O sofrimento une as pessoas, enquanto a abundância e a riqueza dividem os povos. Em nosso tempo, o sucesso está muito em moda. A força está na moda. E, para ser forte e bem sucedido, é preciso lançar fora todos os escrúpulos. E, ao fazer isso, a pessoa se torna solitária, porque perde todos os amigos.
O senhor é bem-sucedido?
Kieślowski – Não. Sou bem-sucedido profissionalmente. Mas, no verdadeiro sentido da palavra, na maneira como entendo isso, não o sou. Entendo o sucesso como a realização dos próprios desejos. E eu não posso conseguir isso jamais, porque desejo estar em paz comigo mesmo. Nunca estarei.
Na Polônia comunista, sob a lei marcial, o Senhor travou uma luta constante contra a censura do governo.
Kieślowski – O que nós, os escritores e os cineastas, tentamos fazer foi coexistir com a censura. Burlá-la, enganá-la. Foi uma boa lição. Exatamente como todo limite, toda restrição é uma inspiração. Acredito que muitas descobertas intelectuais e artísticas na Europa Oriental foram feitas por causa da censura.
O senhor coexiste com uma indústria ocidental que faz filmes caros e deixa a audiência definir o final.
Kieślowski – É um absurdo. Em meus filmes, sou eu quem decide isso. Para isso é que sou pago. Arte não tem nada a ver com democracia, é autocrática.
Estado de São Paulo, 14/03/1996
Leandro Antonio
Sessões
Pensei, por que não transcrever esta entrevista para o Sessões? É rápida, porém diz muita coisa sobre o período de maior “badalação” na vida deste diretor – a década de 1990. Também é possível perceber traços de personalidade e da sinceridade daquele que sem saber ou não, estava chegando ao final da vida.
Embora Krzysztof Kieślowski tenha em sua filmografia dezenas de filmes, por aqui, o que mais se conhece e se difunde deste cineasta é sua famosa e premiada Trilogia da Cores, já comentada aqui no Sessões. Reconheço que também não sei muito sobre, mas ainda há tempo para saber. Vamos a entrevista:
“Desejo estar em paz comigo mesmo, mas nunca estarei.”
Quase todas as suas obras importantes estão baseadas em dogmas ocidentais. Será esse o papel da ciência e da arte: redefinir e reapresentar valores tradicionais?
Kieślowski – Não estou certo de que cinema seja arte. Se o for, esta poderia ser uma de suas funções.
Se o cinema não é arte, o que é?
Kieślowski – O cinema é uma maneira primitiva de contar histórias. E o homem sempre sentiu necessidade de contar e escutar histórias. Mas, a câmera cinematográfica registra apenas o que está diante dela. Imaginem tentar filmar a frase: “Ele começou a vir vê-la cada vez menos, até que parou inteiramente de vir.” Essa é uma frase que ocorre frequentemente na literatura. Mas, você não pode filmá-la, porque fala de tempo, de um relacionamento entre duas pessoas. Se você tentasse, precisaria de meia hora.
Por que o senhor escolhe fazer filmes se é a forma inadequada?
Kieślowski – Eu não escolhi essa profissão. Ela simplesmente aconteceu. Faço filmes para estabelecer um diálogo com as pessoas, mas com cada indivíduo que vem ver meu filme. Quero que meu espectador faça as mesmas perguntas que faço a mim mesmo. Por que devo viver? Por que devo acordar pela manhã? Por que tenho de ir trabalhar? O que ocorrerá depois de minha morte? Gostaria que meu espectador entendesse que não está sozinho em seus temores, em suas dúvidas e em sua sensação de que muitas vezes a vida não tem sentido. Essas são perguntas que não têm respostas.
Seus filmes mais recentes tratam da alienação. O homem é mais solitário na década de 90?
Kieślowski – Sem dúvida. Quanto mais rico é um país, mais solitários são seus habitantes. Nunca vi pessoas tão sozinhas como na Suíça, onde filmei A Fraternidade é Vermelha.
Será que o homem está mais isolado nos países ricos do Ocidente do que estava na Polônia e nos países do bloco oriental sob o império soviético?
Kieślowski – Sem dúvida. O sofrimento une as pessoas, enquanto a abundância e a riqueza dividem os povos. Em nosso tempo, o sucesso está muito em moda. A força está na moda. E, para ser forte e bem sucedido, é preciso lançar fora todos os escrúpulos. E, ao fazer isso, a pessoa se torna solitária, porque perde todos os amigos.
O senhor é bem-sucedido?
Kieślowski – Não. Sou bem-sucedido profissionalmente. Mas, no verdadeiro sentido da palavra, na maneira como entendo isso, não o sou. Entendo o sucesso como a realização dos próprios desejos. E eu não posso conseguir isso jamais, porque desejo estar em paz comigo mesmo. Nunca estarei.
Na Polônia comunista, sob a lei marcial, o Senhor travou uma luta constante contra a censura do governo.
Kieślowski – O que nós, os escritores e os cineastas, tentamos fazer foi coexistir com a censura. Burlá-la, enganá-la. Foi uma boa lição. Exatamente como todo limite, toda restrição é uma inspiração. Acredito que muitas descobertas intelectuais e artísticas na Europa Oriental foram feitas por causa da censura.
O senhor coexiste com uma indústria ocidental que faz filmes caros e deixa a audiência definir o final.
Kieślowski – É um absurdo. Em meus filmes, sou eu quem decide isso. Para isso é que sou pago. Arte não tem nada a ver com democracia, é autocrática.
Estado de São Paulo, 14/03/1996
Leandro Antonio
Sessões
Lê, grande intervenção.
ResponderExcluirComo você mesmo disse, Kieslowsky é muito renomado, porém pouco conhecido. Eu faço parte desse time. Aliás, tenho um bloqueio com esses grandes diretores. Talvez o medo, talvez respeito pela obra. Mas como você disse, ainda há tempo.
Essa entrevista mostra um ser muito complexo, sereno e inteligente. Mas a sensibilidade é a sua marca registrada, como podemos ver na Trilogia das Cores.
Parabéns pela publicação e vamos atrás de mais outras para desvendar esses gênios que fazem do cinema essa coisa (arte ou não arte) de contar nossas histórias.
Pois é, Vitor... Gostei muito da condução da entrevista. O jornalista procurou sobretudo saber sobre o homem, seus anseios, o que se busca ao fazer arte. No fim das contas, esta curta entrevista tornou-se um mote para pensar a condição humana.
ResponderExcluirLeandro Antonio
Sessões