Os Inquilinos - Os Incomodados Que se Mudem


Nome Original: Os Inquilinos - Os Incomodados Que Se Mudem
Diretor: Sérgio Bianchi
Ano: 2009
País: Brasil
Elenco: Marat Descartes, Ana Carbatti, Fernando Alves Pinto, Zezeh Barbosa, Caio Blat, Leona Cavalli, Aílton Graça e Cássia Kiss.
Prêmios: Melhor Atriz Coadjuvante (Cássia Kiss) e Roteiro no Festival do Rio, Melhor Filme, Diretor e Roteiro no Festcine Goiânia, Melhor Filme, Ator (Descartes) e Atriz (Carbatti) no Festival de Cinema Luso-Brasileiro e Melhor Filme, Diretor e Ator (Descartes) do 7º Prêmio Fiesp/Sesi - SP.
Os Inquilinos (2009) on IMDb


Num mundo muito próximo do real, vemos a vida passar pela janela. Não abrimos muito para quem não percebam que estamos de olho. Cuidar um pouco da vida alheia não faz mal para ninguém. Saber o que acontece, uma fofoca é comum, bom para relaxar, pra saber o que nossos filhos e cônjuges andam fazendo pela redondeza. Vejo o mundo daqui de dentro, com um olhar através das grades de ferro é a maior certeza de que o medo das ruas nos deixa enclausurados, como um cárcere. Observar a vida pela janela é uma espécie de BBB sem Bial, sem poesia e sem um milhão de reais.

O casal Valter e Iara são típicos moradores da periferia paulistana em busca de se ver cada vez mais longe das favelas. Libertar-se dos fantasmas que a orla onde vivem é a meta de vida do casal. Iara cuida de casa e fuma. Valter trabalha durante todo o dia e estuda à noite, nessa eterna busca pelo crescimento, seja lá para onde for. Os dois filhos pequenos são a razão de viver do zeloso casal. Mas essa vida pacata, onde o dia a dia é visto como uma escada para alcançar um status que a sociedade exige, muda por conta dos novos vizinhos que alugaram a casa dos fundos do Sr. Dimas. Aquela vizinhança nunca mais seria a mesma. Festas, bebedeiras, barulho, vagabundagem. Julgá-los como o demônio no meio dos cordeiros tornou-se inevitável, mas o temor de enfrentá-los domina e congela. Indefectivelmente o pior acontecerá se nada for feito. Só não sabemos quem pagará o caro preço pela inércia que a paúra urbana nos causa. Uma paranóia delirante apesar da sobriedade das firmes paredes da angústia. Esses inquilinos...


Sérgio Bianchi é reconhecidamente o maior cineasta político brasileiro vivo. Não pense em partidos, bandeiras ou propaganda, mas sim no escancaramento da verdade vivida pelo povo e que não é visto no cinema comum. De tão escancarado seus filmes anteriores foram deixados de lado, taxados de complexos, duros demais, difíceis e loucos. Não nego que é um cinema duro de se ver, mas importante demais para entender o Brasil em cada momento. Ao contrário dos moradores que retratou, Bianchi é valente, bravo, destemido e faz um cinema verdadeiro para pessoas que não se escondem atrás das grades que tem a vida usurpada. Em “Os Inquilinos” o equilíbrio foi encontrado e a crítica impositiva dos outros longas aqui dá espaço para subjetividade, onde os problemas estão lá, mas não sangrando e chocando. Vemos, pensamos e vivemos essa vida urbana que roda atrás de aparências de um sistema que destrói sonhos e causa o câncer da subserviência nos seres mais (im)puros. Um cinema palpável, de liberdade poética invejável e que define bem o que é a vida social. Vida longa à Bianchi.

Leia o poema Morte do Leiteiro de Carlos Drummond de Andrade. A arte, a poesia e o lúdico imita a vida. A vida como ela é, aqui de forma menos sofrida:

Há pouco leite no país
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.


Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas,
seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.


Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto
Com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma pequena mercadoria.


E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.


Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.


Mas este entrou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.


Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.


Da garrafa estilhaçada.
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

O restante da filmografia de Bianchi será alvo de comentários aqui no Sessões em breve. Os incomodados que se mudem.

Vitor Stefano
Sessões

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